Beleza e Salvação

Enquanto o mundo segue com os seus julgamentos frios, eu ainda prefiro me ocupar de minhas razões sagradas. É um jeito de tentar minimizar o poder de tudo o que é diabólico sobre mim. A mídia e sua constante necessidade de polemizar o menor dos fatos, retirando do anonimato os assassinos de todo dia e os elegendo como notícias formidáveis. O diabólico nas primeiras páginas, enquanto as pessoas que verdadeiramente mereceriam estampar as manchetes estão reclusas e esquecidas. O que me conforta é saber que o bem não desiste. Ele sobrevive mesmo no esquecimento.
Tenho conhecido iniciativas maravilhosas por este Brasil imenso. Iniciativas pequenas, mas capazes de revolucionar o mundo a partir de medidas menores. O poeta já dizia “Vamos reformar o mundo? Vamos começar lavando os pratos”. Gente que está lavando os pratos do mundo, recomeçando a vida, fazendo pacto com a justiça, ainda que não noticiada. São as iniciativas do terceiro setor, organizações não governamentais que resolveram arregaçar as mangas ao invés de protestarem com armas e bandeiras. Optaram por outra forma de manifestação. O protesto é civilizado, é construtor. Nasce e se desdobra em iniciativas concretas.
Um exemplo? “Beleza e Cidadania”, uma organização liderada por Lara Dee, uma nordestina que veio para SP em busca de oportunidades. Após alcançar os objetivos pessoais, ela resolveu cuidar dos marginalizados do mundo. A ONG que lidera trabalha a partir do lema “Beleza é fundamental, cidadania é vital”. Todas as iniciativas da organização estão voltadas para o desejo de devolver ao ser humano a beleza perdida. Não, não se trata de uma redução da beleza, limitando o conceito ao atrativo estético. A mística que a move é a cosmética. Note bem que a palavra “cosmético” deriva da palavra grega ko•sme•ti•kós, que significa “hábil em adornar”. Lara Dee compreendeu a cosmética de maneira ampla e criativa. Mesmo que ela não saiba, ela é movida pela mística da criação do mundo, quando Deus ordena que o caos dê lugar à beleza.
A narração bíblica que trata das origens do mundo nos remete ao contexto da beleza. Deus ordena o caos e dele extrai a criação. O conceito de caos está diretamente associado ao contexto do “não belo”. Caos é a desordem, o anti-cosmos, a feiúra. O gesto criativo de Deus acende a luz e desfaz o poder do caos. É o próprio Deus quem canta: “Tudo é bom, tudo é belo!”
O grande problema é que desde a origem do mundo as escolhas humanas nem sempre estão a serviço da beleza e da bondade. O que a grande mídia noticia e expõe em letras garrafais costuma ser o descomprometimento humano com a continuidade da criação.
É tão bonito pensar que somos continuadores da criação e que Deus continua criando cada vez que uma ação humana restitui a beleza perdida. É tão bonito pensar que Deus alcança o mundo pela força de braços comprometidos com a beleza e a verdade, assim como os de Lara Dee, que se mobiliza para vencer o poder das serpentes que legitimam a presença de tudo o que é diabólico e destruidor.
Lara Dee nos ensina que num rosto que fica mais bonito Deus canta a sua glória. Num coração que fica mais justo Deus restabelece o seu projeto. Num único alcoólatra recuperado, Deus recupera a humanidade inteira. Lara Dee nos ensina que o bem, mesmo quando não é noticiado ele não perde a sua força, porque se alimenta de convicções silenciosas, mas atuantes. Lara Dee nos ensina que o cosmos precisa de ética, e que a urgência dos nossos dias é que a humanidade redescubra a habilidade de adornar o mundo.
Aprendamos com ela. Como? Buscando os caminhos da beleza, da verdade e da justiça, desfazendo os poderes do caos sobre nós. Desarticulando as armadilhas das fealdades sociais que nutrem a indignidade, a falta de brio e as monstruosas iniciativas que desagregam a beleza criada.
Lara Dee é uma voz profética dos nossos tempos. Não, ela não é gritada nos átrios sagrados de nossos templos religiosos convencionais. Ela está no mundo, nos subterrâneos do mundo, no fundo que nem sempre eu consigo alcançar. Ele não tem os mesmos altares que eu. Ela não reza com as mesmas cartilhas que eu rezo, nem tampouco celebra do mesmo jeito que eu celebro. O bonito é saber que mesmo estando em pontas tão distintas e distantes, os nossos corações estão congregados pelas mesmas causas e razões. Eu, na celebração da palavra que cristifica o mundo. Ela, na celebração concreta que coloca sobre o meu altar o sacrifício já resultado em ressurreição.
Lara Dee, sigamos juntos na transformação do mundo. Apaixonados pelos calvários da humanidade, mas comprometidos com as alegrias e com as belezas que vislumbramos, mesmo quando o opaco da tristeza insiste em permanecer.

(Padre Fábio de Melo, SCJ)

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